sexta-feira, 8 de junho de 2012

OS VALDENSES PERDERAM O PRIMEIRO AMOR


Os valdenses da heresia para o protestantismo

Foi no ano 1545, na bela região de Lubéron, da Provença, no sul da França. Ali se reunira um exército para cumprir uma terrível missão, instigada pela intolerância religiosa. Seguiu-se uma semana de derramamento de sangue.

ALDEIAS foram arrasadas, e os habitantes foram presos ou mortos. Soldados brutais praticaram atrocidades cruéis num massacre que fez a Europa estremecer. Uns 2.700 homens foram mortos, e 600 foram mandados trabalhar em galés, sem se mencionar o sofrimento das mulheres e das crianças. O comandante militar que executou esta campanha sanguinária foi elogiado pelo rei francês e pelo papa.

A Reforma já havia dividido a Alemanha, quando o rei católico Francisco I, da França, preocupado com a expansão do protestantismo, fez indagações a respeito de supostos hereges no seu reino. Em vez de encontrar uns poucos casos isolados de heresia, as autoridades na Provença descobriram aldeias inteiras de dissidentes religiosos. Emitiu-se o edito para eliminar esta heresia e ele foi finalmente executado no massacre de 1545.

Quem eram esses hereges? E por que foram alvo de violenta intolerância religiosa?

Da riqueza para a pobreza

Os mortos no massacre pertenciam a um movimento religioso existente desde o século 12 e que abrangia uma grande região da Europa. A maneira em que esse movimento se espalhou e sobreviveu por vários séculos torna-o singular nos anais da dissidência religiosa. A maioria dos historiadores concorda que o movimento teve início por volta do ano 1170. Na cidade francesa de Lyon, um comerciante rico, de nome Vaudès (ou Pedro Valdo), interessou-se profundamente em saber como agradar a Deus. Pelo visto, induzido pela admoestação de Jesus Cristo, para que um certo homem rico vendesse os seus bens e ajudasse os pobres, Vaudès fez provisão financeira para a família e então abriu mão das suas riquezas para pregar o Evangelho. (Mateus 19:16-22) Ele logo tinha seguidores, que mais tarde ficaram conhecidos como valdenses.

A pobreza, a pregação e a Bíblia eram a principal preocupação na vida de Vaudès. O protesto contra a opulência clerical não era novidade. Já por algum tempo, diversos dissidentes clericais haviam denunciado as práticas corruptas e os abusos da Igreja. Mas Vaudès era leigo, assim como a maioria dos seus seguidores. Sem dúvida, isto explica por que ele achava necessário ter a Bíblia na linguagem vernácula, do povo. Visto que a versão latina da Bíblia, da Igreja, só era acessível aos clérigos, Vaudès comissionou uma tradução dos Evangelhos e de outros livros bíblicos para o franco-provençal, a língua entendida pelo povo do centro-leste da França. Agindo segundo a ordem de Jesus, de pregar, os pobres de Lyon foram às ruas com a sua mensagem. (Mateus 28:19, 20) O historiador Gabriel Audisio explica que a insistência deles na pregação em público tornou-se a questão decisiva na atitude da Igreja para com os valdenses.

De católicos para hereges

Naqueles dias, a pregação ficava restrita aos clérigos, e a Igreja reivindicava o direito de conceder a autorização de pregar. Os clérigos consideravam os valdenses ignorantes e iletrados, mas em 1179, Vaudès procurou obter do Papa Alexandre III a autorização oficial para pregar. A permissão foi concedida — mas sob a condição de que os clérigos locais a aprovassem. O historiador Malcolm Lambert observa que isto “equivalia praticamente a uma recusa total”. Deveras, o Arcebispo Jean Bellesmains, de Lyon, proibiu formalmente a pregação por leigos. Vaudès respondeu por citar Atos 5:29: “Temos de obedecer a Deus como governante antes que aos homens.” Por não acatar a proscrição, Vaudès foi excomungado pela Igreja em 1184.

Embora os valdenses fossem banidos da diocese de Lyon e expulsos da cidade, parece que a condenação inicial foi de certa maneira teórica. Muitas pessoas comuns admiravam os valdenses pela sua sinceridade e seu modo de vida, e até mesmo bispos continuavam a falar com eles.

Segundo o historiador Euan Cameron, parece que os pregadores valdenses não se “opunham à Igreja Católica em si”. Eles apenas “queriam pregar e ensinar”. Historiadores dizem que o movimento foi praticamente impelido para a heresia por uma série de decretos, que progressiva e permanentemente o marginalizaram. As condenações feitas pela Igreja culminaram no anátema emitido pelo Quarto Concílio de Latrão contra os valdenses em 1215. Como isso afetou a pregação deles?

Passaram a agir às ocultas

Vaudès morreu no ano 1217, e a perseguição dispersou seus seguidores para os vales alpinos franceses, a Alemanha, o norte da Itália, e a Europa Central e Oriental. A perseguição também fez os valdenses estabelecer-se em zonas rurais, e isso limitou sua pregação em muitas áreas.

Em 1229, a Igreja Católica completou sua cruzada contra os cátaros, ou albigenses, no sul da França. Os valdenses tornaram-se a seguir os objetos de tais esforços. A Inquisição, em pouco tempo, se voltaria impiedosamente contra todos os opositores da Igreja. O temor fez com que os valdenses passassem a agir às ocultas. Em 1230, eles não mais pregavam em público. Audisio explica: “Em vez de procurarem novas ovelhas .., dedicavam-se a cuidar dos convertidos, mantendo-os na fé em face da pressão externa e da perseguição.” Ele acrescenta que “a pregação continuou essencial, mas mudara completamente na maneira em que era realizada”.

Suas crenças e suas práticas

Em vez de fazerem homens e mulheres empenhar-se na pregação, os valdenses, no século 14, haviam criado uma distinção entre pregadores e crentes. A essa altura, apenas homens bem treinados se empenhavam na obra pastoral. Esses ministros itinerantes, mais tarde, passaram a ser conhecidos como barbes (tios).

Os barbes, que visitavam famílias valdenses nos seus lares, empenhavam-se em manter o movimento vivo, em vez de difundi-lo. Todos os barbes sabiam ler e escrever, e seu treinamento, que durava até seis anos, baseava-se na Bíblia. O uso da Bíblia no vernáculo ajudava-os a explicá-la aos seus rebanhos. Até mesmo os opositores admitiam que os valdenses, inclusive seus filhos, tinham uma forte cultura bíblica e podiam citar grandes partes das Escrituras.

Entre outras coisas, os primeiros valdenses rejeitavam a mentira, o purgatório, missas pelos mortos, perdões e indulgências papais, e a adoração de Maria e de “santos”. Realizavam também celebrações anuais da Refeição Noturna do Senhor, ou Última Ceia. Segundo Lambert, sua forma de adoração, “na realidade, era a religião do leigo comum”.

“Uma vida dupla”

As comunidades dos valdenses eram muito unidas. As pessoas se casavam com outros membros do movimento e, no decorrer dos séculos, isto criou sobrenomes valdenses. Na sua luta para sobreviver, porém, os valdenses procuravam ocultar seus conceitos. O segredo mantido sobre suas crenças e práticas religiosas facilitou aos opositores lançar contra eles acusações absurdas, por exemplo, dizendo que praticavam a adoração do Diabo.

Um modo de os valdenses combaterem essas acusações foi por transigirem e praticarem o que o historiador Cameron chama de “conformidade mínima” com o culto católico. Muitos valdenses confessavam-se a sacerdotes católicos, assistiam à missa, usavam água benta e até participavam em peregrinações. Lambert observa: “Em muitos sentidos, faziam o mesmo que seus vizinhos católicos.” Audisio declara francamente que, com o tempo, os valdenses “levavam vida dupla”. Ele acrescenta: “Por um lado, ao que tudo indica, comportavam-se como católicos para proteger sua relativa tranqüilidade; por outro lado, observavam alguns ritos e hábitos entre eles para garantir a continuidade da comunidade.”

Da heresia para o protestantismo

No século 16, a Reforma mudou radicalmente o cenário religioso europeu. Vítimas de intolerância podiam procurar reconhecimento legal no seu próprio país ou emigrar em busca de condições mais favoráveis. A idéia de heresia também se tornou menos importante, visto que muitos haviam começado a questionar a ortodoxia religiosa estabelecida.

Já em 1523, o bem-conhecido reformador Martinho Lutero mencionou os valdenses. Em 1526, um dos barbes valdenses levou aos Alpes as notícias sobre os acontecimentos religiosos na Europa. A isto seguiu-se um período de intercâmbio, durante o qual comunidades protestantes compartilhavam idéias com os valdenses. Os protestantes incentivaram os valdenses a patrocinar a primeira tradução da Bíblia das línguas originais para o francês. Impressa em 1535, ela ficou mais tarde conhecida como a Bíblia Olivétan. Ironicamente, porém, a maioria dos valdenses não entendia o francês.

Com a continuação da perseguição causada pela Igreja Católica, grande número de valdenses se estabeleceu na região mais segura da Provença, no sul da França, assim como fizeram imigrantes protestantes. As autoridades foram logo alertadas sobre esta imigração. Apesar de muitos relatórios positivos a respeito do estilo de vida e da moral dos valdenses, alguns questionavam sua lealdade e os acusavam de serem uma ameaça para a boa ordem. Emitiu-se o edito de Mérindol, que resultou em horrível derramamento de sangue.

As relações entre os católicos e os valdenses continuaram a piorar. Reagindo aos ataques contra eles, os valdenses até recorreram à força das armas para se defender. Este conflito os levou a ingressar no rebanho protestante. De modo que os valdenses se aliaram à corrente principal do protestantismo.

No decorrer dos séculos, estabeleceram-se igrejas valdenses em países tão distantes da França como o Uruguai e os Estados Unidos. Todavia, a maioria dos historiadores concorda com Audisio, que diz que “o valdismo acabou na época da Reforma”, quando foi “absorvido” pelo protestantismo. Na realidade, o movimento valdense havia perdido muito do seu zelo inicial séculos antes. Isto se deu quando os seus membros, por medo, abandonaram a pregação e o ensino orientados pela Bíblia (Estudo Perspicaz, Vol III).

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